quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Coração Delator

Deixo para vocês, um conto do livro de Edgar Allan Poe, 
O CORAÇÃO DELATOR:


       Verdade! Nervoso – muito – muito, terrivelmente nervoso eu fui e sou; mas por que você diria que estou louco? A doença havia aguçado meus sentidos – não os destruído, não os embotado. Acima de tudo, tornara sensível o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas no céu e na terra. Ouvia muitas coisas no inferno. Como, então, estou louco? Ouça! E observe com quanta lucidez – com quanta calma posso contar-lhe a história inteira.
       É impossível dizer como a ideia entrou em meu cérebro pela primeira vez; mas uma vez concebida, ela me assombrava dia e noite. Propósito não havia nenhum. Paixão não havia nenhuma. Eu amava o velho. Ele nunca havia me enganado. Ele nunca havia me afrontado. Por seu ouro eu não tinha desejo algum. Acho que era seu olho! Sim, era isto! Ele tinha o olho de um abutre – um olho azul pálido, com uma membrana sobre ele. Sempre que ele caía sobre mim, meu sangue esfriava; e assim, passo a passo – muito gradualmente – eu tomei a decisão de tirar a vida do velho e assim me livrar do olho para sempre.
       Agora, esta é a questão. Você me imagina louco. Loucos não sabem de nada. Mas você deveria ter-me visto. Você deveria ter visto quão sabiamente – com que cuidado – com que previdência – com que dissimulação pus-me a trabalhar! Eu nunca fora tão gentil com o ­velho como na semana inteira antes de matá-lo. E todas as noites, em torno da meia-noite, eu virava o trinco da sua porta e a abria – oh, tão suavemente! E então, quando ­havia feito uma abertura suficiente para minha cabeça, passava para dentro uma lanterna furta-fogo, toda fechada, fecha­da de maneira que nenhuma luz brilhasse para fora, e então enfiava a cabeça. Oh, você teria rido ao ver quão sagazmente eu a enfiava! Eu a movia lentamente – muito, muito lentamente – de maneira a não incomodar o sono do velho. Eu levava uma hora para colocar minha cabeça inteira tão para dentro da abertura, que podia vê-lo deitado em sua cama. Ah! E um louco teria sido tão esperto assim. E, então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna de maneira cuidadosa – oh, de maneira tão cuidadosa – tão cuidadosa (pois as dobradiças rangiam) – eu a abria só o suficiente para que um único raio tênue de luz caísse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz por sete longas noites – todas as noites, bem à meia-noite – mas sempre encontrei o olho fechado; e assim fora impossível fazer o trabalho, pois não era o velho que me perturbava, mas seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava audaciosamente no aposento e falava de modo corajoso, chamando-o pelo nome com um tom entusiasmado, e perguntando como ele havia passado a noite. Então, veja você que ele seria um velho muito perspicaz, realmente, para suspeitar que todas as noites, bem à meia-noite, eu o observava enquanto dormia.
       Na oitava noite, fui mais cuidadoso que de costume ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio movia-se mais rápido que minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus poderes – de minha sagacidade. Eu mal continha meus sentimentos de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo a porta, pouco a pouco, e ele nem a sonhar a respeito de meus atos ou pensamentos secretos. Eu cheguei a rir da ideia; e talvez ele tenha me ouvido, pois se mexeu na cama de súbito, como se sobressaltado. Agora você poderia pensar que recuei – mas não. Seu quarto estava preto como piche com a densa escuridão (pois as venezianas estavam bem fechadas devido ao medo de ladrões), de maneira que eu sabia que ele não veria a porta abrindo-se, e eu continuei a empurrá-la devagar, devagar.
       Eu tinha minha cabeça dentro, e estava prestes a abrir a lanterna, quando meu dedão escorregou sobre o ferrolho de estanho e o velho levantou-se de um salto, gritando:
– Quem está aí?
       Eu me mantive imóvel e não disse nada. Por uma hora inteira não movi um músculo, e, nesse ínterim, não o ouvi deitar-se. Ele ainda estava acordado sobre a cama, escutando; como eu havia feito, noite após noite, ouvindo os besouros agourentos na parede.
Em seguida, ouvi um ligeiro gemido, e eu sabia que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou pesar – oh, não! – era o som baixo e abafado que ­emana do fundo da alma quando sobrecarregada de espanto. Eu conhecia bem o som. Muitas noites, bem à meia-noite, quando o mundo todo dormia, ele emanava de meu próprio peito, intensificando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Eu digo que o conhecia bem. Eu sabia o que o velho sentia, e sentia pena dele, apesar de rir à socapa em meu coração. Eu sabia que ele estivera deitado, acordado desde o primeiro ligeiro ruído, quando ele havia se virado na cama. Seus temores haviam crescido desde então. Ele estivera tentando acreditá-los infundados, mas não conseguia. Ele estivera dizendo para si mesmo: – “Não é nada, só o vento na chaminé – é só um camundongo atravessando o assoalho”, ou “É somente um grilo que deu um único cricri”. Sim, ele estivera tentando confortar-se com estas suposições: mas ele as considerara todas em vão. Todas em vão; pois a Morte, ao aproximar-se, havia assomado diante dele com sua sombra negra, e envolvido sua vítima. E foi a influência lúgubre da sombra despercebida que o fez sentir – embora não visse ou ouvisse – a presença de minha cabeça dentro do quarto.
       Quando eu havia esperado um longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, decidi abrir uma pequena fresta, muito, muito pequena, na lanterna. Então a abri – você não imagina quão furtivamente – furtivamente – até que, por fim, um simples raio indistinto, como o fio da aranha, disparou pela fresta e caiu em cheio sobre o olho de abutre.
Ele estava aberto – bem, bem aberto – e fiquei furioso quando olhei fixamente para ele. Eu o vi com perfeita nitidez – todo de um azul sem brilho, com uma membrana hedionda sobre ele, que enregelava o próprio tutano em meus ossos; mas eu não conseguia ver mais nada do ­rosto do velho ou sua pessoa, pois havia direcionado o raio como se por instinto, precisamente sobre o maldito ponto.
       E não lhe contei que aquilo que você confunde com loucura é apenas uma hipersensibilidade do sentido? Então, como eu dizia, chegou aos meus ouvidos um ruído baixo, indistinto e rápido, como o de um relógio quando envolvido em algodão. Eu conhecia bem aquele som, também. Era a batida do coração do velho. Ela aumentou a minha fúria, como a batida de um tambor estimula o soldado a ser corajoso.
       Mas mesmo assim me refreei e permaneci imóvel. Eu mal respirava. Segurei a lanterna sem movimentá-la. Tentei ver quão firmemente eu conseguia manter o raio sobre o olho. Neste ínterim, o tamborilar diabólico do coração aumentou. Tornava-se mais e mais rápido, mais e mais alto, a cada instante. O terror do velho devia ser extremo! Ele batia mais alto, veja bem, mais alto a cada momento que passava! Tenho sua atenção? Já lhe contei que sou nervoso: de fato sou. E agora, a altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso daquela casa velha, um ruído tão estranho como este me perturbou ao ponto de um terror incontrolável. No entanto, por alguns minutos mais, me refreei e permaneci imóvel. Mas a batida ficou cada vez mais alta, mais alta! Achei que o coração estouraria! A hora do velho havia chegado! Com um brado, escancarei a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito estridente – um somente. Em seguida, o arrastei para o chão e puxei a cama pesada sobre ele. Então, sorri alegremente ao perceber a proeza tão adiantada. Mas, por muitos minutos, o coração seguiu batendo com um ruído amortecido. Isto, entretanto, não me exasperou; ele não seria ouvido através da parede. Por fim, ele cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o corpo. Sim, ele estava morto, de todo morto. Coloquei minha mão sobre o coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulso. Ele estava de todo morto. Seu olho não me incomodaria mais.
Se você ainda acha que sou louco, você não achará mais isto quando eu descrever as precauções inteligentes que tomei para ocultar o corpo. A noite se aproximava do fim, e trabalhei apressadamente, mas em silêncio. Em primeiro lugar, desmembrei o corpo. Cortei a cabeça, os braços e as pernas.
       Então removi três tábuas do assoalho do aposento e depositei tudo entre os caibros. Em seguida recoloquei as madeiras de maneira tão inteligente, tão astuciosa, que nenhum olho humano, nem mesmo o dele, poderia ter detectado algo fora do lugar. Não havia nada a ser ­lavado – nenhuma mancha de tipo algum – nenhuma marca de sangue de forma alguma. Eu havia sido ­extremamente cauteloso neste sentido. Uma banheira havia tomado conta de tudo – há, há!
Eram quatro horas quando eu havia terminado esta lida – ainda escuro como a meia-noite. Quando o sino soou a hora, houve uma batida na porta da rua. Desci para abri-la com um coração leve – pois o que eu tinha a temer? Entraram três homens que se apresentaram, com perfeita urbanidade, como oficiais de polícia. Um grito estridente havia sido ouvido por um vizinho durante a noite; a suspeita de um crime havia sido suscitada; a informação havia sido dada na delegacia de polícia, e eles (os policiais) haviam sido incumbidos de fazer uma busca no local.
       Eu sorri – pois o que eu tinha a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito estridente, eu disse, fora meu próprio grito em um sonho. O velho, mencionei, estava ausente, no campo. Levei meus visitantes por toda a casa. Convidei-os a procurarem – procurarem bem. Levei-os, por fim, ao aposento dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável.
        No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e pedi que descansassem de seus labores, enquanto eu mesmo, na audácia arrebatada de meu triunfo perfeito, coloquei minha própria cadeira sobre o local preciso em que repousava o corpo da vítima.
       Os policiais estavam satisfeitos. Minha conduta os havia convencido. Eu estava peculiarmente à vontade. Eles se sentaram e, enquanto eu respondia alegremente, eles conversavam sobre assuntos familiares. Mas não demorou muito para sentir que empalidecia e desejar que deixassem a casa. Minha cabeça doía e imaginei ter ouvido um tinido em meus ouvidos; entretanto, eles seguiram ali, conversando. O tinido tornou-se mais distinto – ele continuou e tornou-se mais distinto. Eu falava de modo mais solto para me livrar do sentimento, mas ele continuava e ganhou em definição – até que, por fim, percebi que o ruído não vinha de dentro dos meus ouvidos.
       Sem dúvida que neste momento fiquei muito páli­do; mas eu falava com mais fluência e com a voz mais alta. No entanto, o som aumentou – e o que eu poderia fazer? Era um som baixo, indistinto, rápido – muito parecido com o som que um relógio faz quando envolvido em algodão. Eu arfava por ar – e, no entanto, os policiais não ouviam nada. Eu falava com mais rapidez – com mais veemência, mas o ruído aumentava de maneira constante. Eu me levantei e discuti a respeito de insignificâncias em um tom alto e com gestos violentos; mas o ruído aumentava de maneira constante. Por que eles não iam ­embora? Eu caminhava de um lado para o outro, no quarto, com passadas pesadas, como se exaltado até a fúria pelas obser­vações dos homens – mas o ruído aumentava de maneira constante. Oh, Deus! O que eu poderia fazer? Eu ­espumava – eu vociferava – eu praguejava! Brandi a cadeira sobre a qual eu estivera sentado e a arrastei sobre as tábuas, mas o ruído sobrepôs-se a tudo e continuou aumentando. Ele ficou mais alto – mais alto – mais alto! E, ainda assim, os homens conversavam agradavelmente e sorriam. Seria possível que eles não estavam ouvindo? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles ouviam! Eles suspeitavam! Eles sabiam! Eles estavam fazendo troça do meu horror! Nisto eu acreditava e nisto acredito. Mas qualquer coisa era melhor do que esta agonia! Qualquer coisa era mais tolerável do que este escárnio! Eu não podia mais suportar aqueles sorrisos hipócritas! Eu sentia que precisava gritar ou morrer! E agora – novamente! Ouçam! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto!
       – Canalhas! – gritei. – Não dissimulem mais! Eu admito o ato! Arranquem as tábuas! Aqui, aqui!        É o ba­ti­men­to de seu coração hediondo!


Nenhum comentário:

Postar um comentário